domingo, 2 de maio de 2010

HUMOR - MAX GEHRINGER (MEMÓRIAS DO SÉCULO XXI)


As previsões sobre o futuro estão quase sempre erradas. Mas quem disse que é para as pessoas saberem o que vai acontecer com elas amanhã?

Por Max Gehringer

* Em 1999, no auge de uma carreira bem-sucedida que o levou a direção de grandes empresas (Pepsi, Elma Chips e Pullman),
Max Gehringer tomou uma decisão raríssima no mundo corporativo: abriu mão do poder e das mordomias de alto executivo para dedicar seu tempo a escrever e a fazer palestras pelo Brasil.
Max escreve regularmente para VOCÊ S/A, Exame, Revista da Web, VIP e Placar (todas publicadas pela Editora Abril). Recentemente, Max lançou seu segundo livro, Comédia Corporativa (Editora Campus). O humor e a sensibilidade dos textos de Max vem de sua vivência prática num mundo que ele conhece degrau por degrau. Seu primeiro emprego, aos 12 anos, foi de
auxiliar de faxina; o último, presidente da Pullman.

"Hoje é 20 de agosto de 2124, quarta-feira, que no Brasil agora chama Wednesday, já que o português foi oficialmente banido quando nos tornamos 67o Estado dos United States of Wide America, em 2095. Teve quem não gostou, claro, principalmente depois que a Floresta Amazônica virou a Tropica Disney World, mas a maioria apoiou porque finalmente pôde tirar passaporte
americano sem aporrinhação e passou a receber salário em dólar.
É verdade que muitos brasileiros ainda conservam um ranço xenófobo, o que é meu caso, por isso este relatório está sendo escrito em nossa antiga língua-mãe, que eu só domino porque nasci lá no distante 1980. Fiz 144 anos, trabalho há 126, estou forte e saudável, mas já ouço insinuações de que minha carreira entrou no plano vegetativo. A vida corporativa do século XXII não é justa com o pessoal da sexta idade como eu, basta a gente chegar aos 140 e começa a ser discriminado no trabalho...

Os velhos tempos me dão saudade (uma de nossas poucas palavras que entraram no Mega Dicionário Americano, como sinônimo para "senseless feeling"), apesar de quase mais nada ser como era. Por exemplo, eu nasci com unha, cabelo e dente, últimos resquícios de nossa ascendência selvagem.
E na juventude pratiquei zelosamente um ato denominado "sexual" para a reprodução da espécie, coisa que, hoje, a ciência simplificou muito: basta ir a qualquer McDonald's, comprar um kit de óvulo e espermatozóide (o número 3 tem sido o preferido pelos consumidores, porque acompanha uma Coca-Cola grátis) e inseri-lo num tubo plugado a um sistema embrionário - cujo nome técnico é "tamagoshi". Aí, é só redigitar a configuração desejada do genoma e depois ir clicando os comandos para as cargas vitais de proteínas.
Simples. Em seis semanas, aparece a ficha fitoergométrica da criança, os custos de alimentação e educação e a mensagem "Are you sure you want to give birth?" Meu filho mais novo, o 365A27W648, vulgo "8", agora deu de ser curioso e me perguntar por que no meu tempo as coisas eram tão complicadas.
Eu tentei explicar para ele que o tal ato ia além da simples reprodução, que a gente sentia prazer em copular, e ele fez aquela cara de nojo, típica de adolescente recém-saído da universidade. Mas, tudo bem, ele tem só 4 anos, um dia talvez entenda melhor.
Eu sei, estou divagando, desculpem. Não é das reviravoltas da natureza que este relatório trata, e sim das relações no trabalho. Meu hiperboss vai fazer uma apresentação no mês que vem, em Urano - com o criativo título de "Como Enfrentar os Desafios do Século XXII" -, e pediu minha colaboração.
Ele quer mostrar às novas gerações a evolução da interação entre empresas e funcionários ao longo dos últimos 150 anos, desde a chamada "Era Jurássica Trabalhista" (1980-2020) até o aparecimento do "Homo Pizza", no final do século XXI. E me escolheu porque eu vivi todas as etapas do processo, além de ser o único por aqui que ainda sabe usar algarismos romanos.
Então, vamos lá:

TRANSPORTE

Os empregados acordavam de manhã e iam para seu local de trabalho dirigindo um veículo pesadão e lerdo, que funcionava queimando derivados do extinto petróleo, chamado "automóvel" - não sei bem por que esse nome, que significa "move-se por si mesmo", já que o tal veículo só se movia sob comando humano e, algumas vezes, nem assim. Mas a maior dificuldade era enfrentar o
"trânsito", do latim transire, "ir para a frente", e esse era exatamente o problema, já que o trânsito quase nunca ia em frente, e daí originou-se uma frase de uso muito comum, "Atrasei por causa do trânsito", que literalmente significa "Fiquei para trás porque fui para a frente". Ou seja, aquele povo era duro de entender. O mais incrível é que, apesar de tanta confusão e
contrariando a lógica, as pessoas ainda conseguiam chegar ao que chamavam "local de trabalho".

LOCAL

O sistema jurássico de trabalho era coletivo, e as empresas até usavam jargões como "teamwork" para incentivar essas aglomerações, sem atentar para o fato de que elas eram uma fonte de proliferação de micróbios. O ponto de encontro era o escritório, um lugar onde os funcionários escreviam, daí a origem da palavra. Eram áreas enormes, onde pessoas se amontoavam em
cubículos e passavam a maior parte do tempo produzindo "documentos", cuja principal finalidade era a de servir como evidencia física de que as pessoas estavam ocupadas. Após produzidos, os documentos eram imediatamente "arquivados", de preferência em lugares onde nunca mais pudessem ser localizados. Isso na época tinha o mesmo nome de hoje, "burocracia". A
diferença é que os atrasados do século XX faziam tudo com oito cópias, e nós, 150 anos depois, conseguimos reduzir para sete.

INDIVIDUALIDADE

O primeiro passo para erradicar o coletivismo inútil foi o "SoHo" (Small office, Home office), uma sigla surgida aí por 2000, que permitia aos funcionários trabalhar, confortável e produtivamente, em suas próprias casas. No Brasil, uma das conseqüências imediatas do SoHo foi o aparecimento de uma variante esperta, o "SoNo". O que obviamente implicou num aumento
brutal da quantidade de documentos produzidos, porque só assim os chefes acreditariam que seus funcionários estavam acordados em suas casas. Depois do SoHo veio o "SoCo", aí por 2050. O "Co", todo mundo sabe, significa Chip office. Foi quando as corporações conseguiram implantar um microchip em cada funcionário para controlá-lo 24 horas por dia, desde o batimento cardíaco
até o nível de atividade dos neurônios. Uma das características do SoCo que mais agradou as chefias - além do comando de "wake up call" - foi a possibilidade de emitir um choque elétrico remoto quando o funcionário atrasasse a remessa de um documento.

JORNADA

Trabalha-se oficialmente 2 horas por semana, mas já há rumores de que a jornada será reduzido para 100 minutos semanais, o que, tirando o tempo necessário para o sono e as inconveniências fisiológicas - que não sofreram alterações nos últimos 100 000 anos -, dá umas 120 horas ociosas por semana.
O professor Domenico De Masi, que vive em estado de hibernação metafísica na Itália, afirma que isso é um absurdo, e defende a tese de que no futuro trabalharemos 100 minutos por ano. Mas o problema, mesmo, é que nunca conseguimos nos acostumar com o ócio. Por isso, nossa maior fonte de renda atual é a hora extra - fazemos, em média, 14 delas por dia, inclusive aos
sábados.

EFEITOS COLATERAIS

Hoje, as megacorporações vêm se questionando se essa troca do trabalho grupal pelo individual foi realmente um progresso. Primeiro, porque ninguém mais conhece ninguém, já que os "colegas" viraram imagens digitalizadas. Segundo, porque todo mundo ficou sedentário e engordou uma barbaridade. E terceiro porque os antigos executivos eram estressados, e os novos sucumbem
à depressão, o que acarreta muitos suicídios (ou, em linguagem ciberneticamente correta, self.ctrl+alt+del). O maior guru de administração do século XXII - Tom Peters, vivendo confortavelmente em estado gasoso, num tubo de ensaio - publicou recentemente um artigo que está causando uma comoção corporativa. Ele defende a tese de que "nada substitui o contato
humano". Incrível, dizem seus fiéis admiradores, que ninguém tivesse pensado nisso ainda.

EMPREGO

Conseguir um bom emprego hoje em dia não é difícil. O duro é se manter nele, porque as exigências para resultados de curtíssimo prazo aumentam cada vez mais. O tempo médio de permanência num emprego é de 28 horas. Daí o conceito em moda ser o da habilidade para saltar de galho em galho, ou "businessbilidade", que se resume a três fatores: experiência cósmica,
formação galáctica e ser bem relacionado com quem manda.

SEXO

As diferenças entre sexos não são mais limitantes para o preenchimento de um cargo. Não porque tenha acabado a discriminação, mas porque acabaram os sexos. A antiga classificação "masculino/feminino/outros" caiu em desuso a partir do momento em que os assim chamados "homens" e "mulheres" equilibraram seus níveis de testosterona e estrógeno. A ambivalência
chegou a tal ponto que hoje os dicionários só registram a palavra "testículo" como sinônimo de "pequeno teste aplicado a estagiários".

HIERARQUIA

Nos tempos primitivos, as posições hierárquicas eram decididas ou por competência ou por protecionismo. Mas levava vantagem quem acumulava mais diplomas. Tudo mudou a partir do momento em que foi implantado o sistema de "Transferência Integral de Informações", pelo qual qualquer ser humano, quando completa 2 anos de idade, é acoplado a um megacomputador Deep Blue e absorve, em 15 minutos, o conhecimento acumulado pela espécie nos últimos dez milênios. Tem aí uma novíssima teoria dizendo que isso nos transformou numa raça de esponjas, e que o grande diferencial atual é saber pensar por conta própria, em vez de enfiar o dedo no nariz e dar um "retrieve".
Segundo a teoria, há uma minoria de pensantes que consegue se perpetuar nas chefias porque tem "Inteligência Psicoemocional", ou seja, uma combinação balanceada de "instinto", "conhecimento" e "autocontrole". Eu acho que já ouvi isso antes, só que não me lembro bem quando foi.

RELACIONAMENTO

Os funcionários tem abertura para se comunicar fora do trabalho, desde que respeitem o conceito-chave do século XXII Lógica Absoluta, ou seja, os assuntos devem ficar restritos aos negócios. Sentimentos e emoções, manifestações consideradas contraproducentes, estão proibidas desde 2104.
Mas sempre tem quem não sabe aproveitar a liberdade nosso maior problema social são os subversivos que se reúnem escondidos para praticar o maior delito da atualidade: rir e contar piadas. Não é por acaso que o maior best-seller desta semana é o cibertexto de auto-ajuda "Você Pode Ser Feliz, Desde Que Ninguém Saiba".

INFERNET

A arcaica Internet, uma rede de comunicação que causou furor no fim do século XX, e que hoje é citada como exemplo de paranóia coletiva, foi substituída pela Infernet, a qual todos somos plugados logo ao nascermos.
A palavra veio do latim infernus, "subterrâneo", uma analogia a seu formato de raízes que alimentam o caule central. O caule, de onde saem e para onde convergem todas as informações, é a Suprema Inquisição, cuja regra é "Todos somos iguais perante Deus", sendo que Deus, como todos sabem, é Bill Gates. Embora corra por aí o boato de que quem manda, mesmo, é o ACM...

CONCLUSÃO

Em meus 144 anos, vi o futuro ir acontecendo, e aprendi pelo menos uma coisa: as previsões estavam sempre erradas. Acho que descobri o porquê.


Outro dia achei um livro antigo, que já caiu em desuso por ser a negação da lógica. De qualquer forma, lá foi escrito, há milhares de anos, que cada dia é diferente do outro, exatamente "para que o homem nunca possa descobrir nada sobre seu próprio futuro" (Eclesiastes, 7, 14).


ENDEREÇO: http://textos_legais.sites.uol.com.br/futuro.htm

IMAGEM: internet


18 comentários:

ValériaC disse...

Jorge meu querido amigo...que legal ...nunca vi tanta criatividade numa só pessoa... muito interessante...muito divertido de ler...
Tenha um semana plena de serenidade e alegrias...
Beijos...
Valéria

Kelly Kobor Dias disse...

Sempre fui fão do Gehringer, depois desse texto, fiquei ainda mais fã!!!
bj e ótima semana

Unknown disse...

MA-RA-VI-LHO-SO!!!
Meu amigo Jorge!
Estte texto está simplesmente fantástico... ri do começo ao fim com a forma tão sábia de escrever tantas possíveis futuras verdades, sem ironia, só com muito humor, um humor muito bem dosado e incrivelmente bem bolado...
Muito bom, mque amigo querido!
Beijos, flores e muitos sorrisos (já transformados em gargalhadas!!!)

Blog Espírita Celeiro de Luz disse...

Rsrsrsss...adorei!!!
O pior é que o Gehringer nem tá falando tanta surrealidade... Do jeitinho irônico dele de escrever, saem muitas verdade prá serem repensadas...

Um beijinho bem afetuoso, alma amiga.
Que teu dia seja de paz.

Patricia Cristina disse...

Gehringer é demais!
E você meu querido amigo Jorge, é demais +++ pelas escolhas p/ seu blog.
Já disse que você é especial?
Não?
Então aí vai...VOCÊ É MUIIIITTTOOOO
ESPECIAL.
Uma linda semana!

Jorge disse...

ValeriaC
adoro o Max. Realmentre é muito inteligente e coloca humor de uma forma deliciosa.

Um beijo, Anjo!!

Jorge disse...

Kelly,

Divertido, não?

Um beijo, de coração, minha amiga!!!

Jorge disse...

Carmem,
talento é talento. Ele sabe como escrever e de forma bem engraçada. E também uma crítica fazendo-nos refletir.

Amiga do Infinito, beijo!!!

Jorge disse...

Valerie,

Nada melhor do refletir com humor.

Anjo amiga, beijo teu coração!!
Uma excelente semana!!!

Norma Villares disse...

Jorge meu bom amigo.
Amei este texto, vou comprar o livro pra ler.
Ele falou uma verdade verdadeira. AS pessoas estão tornando a internet na INFERNET.
Não relacionam mais, ficam (se podem) 24 horas plugada.
Muito bom.
Melhores abraços

Jorge disse...

Patricia,

obrigado pelo seu carinho. Cuidado para não massagear meu ego...rs


Meu anjo, beijo, de coração!!!

Jorge disse...

Norma, Lindo Anjo!!

Infernet é bom né?
Uma colocação perfeita mesmo já que estamos nos prendendo demais nela.

Um grande abraço, com amor!!!

Marcia disse...

E faz sentido muitas coisas que ele diz. Inteligente e super bem humorado o texto, nos leva a pensar como estará o nosso mundo daqui a mais um século!
Seus textos sempre nos levam a reflexao, por isso gosto deste cantinho abencoado.
Saúde, paz, amor, luz e uma semana feliz para você!

Teresa Cristina disse...

Nossa o mundo daqui há 114 anos....
Ainda sábado vi uma madame lavando a calçada com mangueira...sem usar nem uma vassoura pra fazer esforço mesmo, fazendo da água vassoura....se fala tanto em cuidar do planeta, mas é tantas coisas absurdas q as pessoas ainda fazem, mas daí é pra se questionar mesmo como é q podem cuidar do planeta se nem mesmo de uma relação com a familia e amigos eles cuidam...cativar é amar, num é mesmo??
Que cada um tenha consciencia do q tem feito de si e td a sua volta....e Max retrata de forma bem humorada neste livro.
Ótimo post!
Bjss e boa semana pra ti^^

Jorge disse...

Marcia,
Que bom que gostas dos posts. E como sou admirador do Gehringer, resolvi postar este texto.

Anjo, beijo e uma semana de luz!!!

Jorge disse...

Teresa,
ainda questionamos porque o mundo vai mal, porque a natureza esta furiosa. Com pessoas que nem respeitam o uso da água, que nem sabe do seu valor, é difícil mudar o mundo, não é mesmo?
E daqui a 100 anos? Vamos continuar existindo?

Anjo, beijos e uma semana de luz!!

Hana disse...

Querido amgo Jorge, estava já com saudade deste cantinho, por vezes com muito humor, como o de hoje, este post e maravilhoso e com um senso de humor diguino do grande Jorge, eu vou comprar o livro que indicou, que horas eu vou ler não sei, mas dou um jeito, me parece uma leitura expendida.Acabei de ler um livro fantastico Jorge depois te passo o nome, ´vc vai adorar, é de um psicologo americano, ele escreve com tanto humor que vc aprende e le sem preceber, um grande abraço meu doce amigo.
com carinho
Hana

Jorge disse...

Hana, minha amiga do Oriente

Sua visita, Hana é que ilumina este cantinho.
E obrigado sempre pelo seu carinho.
Aguardo o nome do livro que leu e gostou.
Beijo, de coração,
Jorge

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